TELEVISÃO, VIOLÊNCIA E INFÂNCIA

TELEVISÃO, VIOLÊNCIA E INFÂNCIA 

“Vamos diretamente ao ponto: sim, ou não, a presença de inúmeros programas de televisão contendo inúmeras cenas de violência levam as crianças a apresentarem, elas mesmas, comportamentos violentos? Penso que devemos, antes de mais nada, admitir que pouco sabemos sobre a influência da televisão sobre o comportamento das pessoas.

Não somente é extremamente difícil aquilatar tal influência (há tantas outras a que uma pessoa está diariamente submetida) como o fenômeno televisão é ainda recente e muito dinâmico (a TV dos anos 60 é bem diferente da de hoje, por exemplo). Logo, devemos abandonar qualquer veleidade de afirmar que a referida influência existe ou não existe, ou é de um certo tipo ou de outro. Mas tal prudência não implica adiar o debate, pois alguns conhecimentos psicológicos sobre o desenvolvimento da criança nos permitem fazer algumas hipóteses sérias.

Um primeiro dado diz respeito à presença ou ausência de tendência agressiva natural nos seres humanos. Ora, hoje admite-se que tal tendência existe. Logo, devemos descartar a hipótese de que a criança nasceria ‘boa’, ‘pacífica’, e que a probabilidade de ela entrar em conflito com outras pessoas e a vontade de agredi-las seriam só decorrências das influências de uma sociedade adulta violenta, má, que perverteria a natureza inocente das crianças.

Uma das tarefas da educação consiste, pelo contrário, em levar a criança a colocar limites aos comportamentos que traduzem sua agressividade e a canalizar essa para ações pessoal e socialmente produtivas. Portanto, parece-me errado afirmar que exemplos de violência, sejam eles dados por adultos de carne e osso ou apresentados em filmes e programas de televisão, tornam violentos seres que, sem esses modelos, seriam absolutamente pacíficos. Todavia, parece-me igualmente errado daí chegar à conclusão de que tais exemplos nada mais fazem do que referendar uma natureza bélica inevitável.

Um segundo dado deve ser lembrado: a infância é a época da construção da identidade, ou seja, da árdua tarefa de ir decidindo qual a melhor resposta para a pergunta ‘quem sou eu?’ Tal resposta é sempre valorativa no sentido de que as imagens que cada um tem de si remetem a categorias como bom, mal, desejável, indesejável, certo, errado etc. Em uma frase: ser é ser valor. Pois bem, nessa construção da identidade, os valores que a sociedade adulta preza e promove têm grande influência. E aqui reencontramos o tema da violência. A pergunta a ser feita não é se a violência está presente ou não nas manifestações culturais (na verdade, sempre esteve presente), mas sim como é interpretada do ponto de vista dos valores.

É justamente nesse ponto que pode-se falar em influência da TV nos comportamentos infantis. Se os programas, além de exacerbar sua presença, associam a violência a determinados valores positivos, eles aumentam a probabilidade de as crianças construírem uma identidade na qual os comportamentos violentos ocupam lugar central.

Ora, hoje, esse é o caso de muitos programas: o recurso à violência é apresentado sempre como legítimo, superior ao uso da inteligência, como único recurso para ‘resolver conflitos’, como fonte de poder e glória. Em resumo, assiste-se às vezes a uma sacralização da violência, que pode levar jovens a construírem sua identidade e seu orgulho em torno dela. Em compensação, pode haver programas que também encenam a violência, mas com significado moral bem diferente: em vez de ser sacralizada, ela é situada num conjunto de valores que a transcendem.

Para ilustrar o raciocínio, tomemos o personagem Zorro, cujos seriados eram muito populares décadas atrás. Zorro emprega a violência? Sim. Ele luta? Sim. Ele é forte? Sim.

Mas vamos pensar um pouco mais sobre esse personagem. Qual é o motivo de sua violência? Lutar contra a injustiça. Quando ele a emprega? Quando os recursos da inteligência não são mais possíveis. Que tipo de violência emprega? Aquela que visa neutralizar o adversário. Que recompensa há para a violência? Nenhuma do ponto de vista financeiro e também nenhuma (pelo menos direta) do ponto de vista da reputação ou da glória, já que o herói esconde-se sob o anonimato de um pacato fazendeiro.

Pois bem, se analisarmos muitos dos programas que hoje encenam a luta, a violência, teremos um quadro valorativo diferente. O motivo da violência é, freqüentemente, aniquilar o outro, não porque é injusto, mas simplesmente porque fere interesses pessoais, porque ele representa o ‘não-eu’. A violência, traduzida pela força bruta de músculos e armas poderosíssimas, é apresentada como único e legítimo recurso. A violência não visa apenas neutralizar o adversário, mas sim destruí-lo por completo, matá-lo. E a recompensa é o poder e a glória.

É plausível pensar que o problema não é tanto a presença ou ausência de violência nos programas que é importante levar em conta, mas sim o tratamento ético dado a ela. A televisão não gera a violência, mas pode participar de um processo que a autoriza, a legitima, a glorifica.

Se hoje a violência tem aumentado na sociedade ocidental como um todo, não é apenas em razão das condições sociais (desemprego, exclusão social), mas também pelo fato de muitas pessoas a ela associarem sua auto-estima, sua identidade. Trata-se de um fenômeno cultural amplo, do qual a TV é apenas uma parte. Mas o fato de ela ser apenas parte do processo não a redime em absoluto. A dignidade impõe que ela reflita sobre seu papel social.

Yves de La Taille é professor livre-docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Texto extraído da Folha de São Paulo.
Colaboração do SOP – Serviço de Orientação Psicopedagógica
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